Pra ser sincero, eu tive a doce ilusão de que chegaria em casa, mesmo após quatro dias de ausência, e encontraria tudo no mesmo lugar. Acho que sou meio ingênuo as vezes. Me surpreendi demais ao chegar e perceber que alguma coisa estava diferente. Não é bem “diferente” a palavra certa. Havia me acostumado com a ausência de fumaça e com as janelas abertas proporcionadas pela Clarisse e encontrei uma casa com ar pesado e com todas as janelas fechadas. Era fácil perceber que estava todo mundo em casa, conheço os ruídos típicos de cada um, mas não havia ninguém na sala, cada um estava confinado em seu respectivo quarto. Dei alguns passos, e duas batidinhas leves em uma das portas:
- Posso entrar Wilsão?
A porta abriu e eu entrei. Wilsão me recebeu com um abraço e um carinho na nuca com sua mão gorda.
- Achei que você tinha ido embora mesmo cara, sua saída abalou muito todo mundo, não faz mais isso, quando você saiu, o Welly entrou desesperado aqui no quarto, acho que no fundo ainda estamos todos impressionados pelo que aconteceu com o Marcus.
- Desculpa cara, não foi a intenção, sabe, devemos muito ao Hélio, mas isso não dá a ele o direito de fazer as coisas como fez aquele dia, não mesmo, não consegui me segurar.
- Eu sei, você tá certo, mas não vai mais embora desse jeito. Vai falar com o Hélio, vou avisar o Welly que você voltou, ele vai ficar mais tranqüilo também. Nesses dias ninguém conseguiu nem entrar no clima pra tocar alguma coisa.
- Nem sei o que dizer... Vou falar com o Hélio.
Fui direto pro quarto do Hélio, e sinceramente, eu estava preparado para ser mal recebido. Antes de eu chegar na porta ela abriu e o Hélio saiu pra me dar um abraço, fiquei sem entender nada.
- Ouvi sua voz, meu irmão.
- Acho que nos devemos desculpas, cara.
- Acho que sou só eu quem deve desculpas, e não é só a você, devo desculpas a todo o quinteto.
- QUINTETO?
- Eu gosto do som da Clarisse, meu irmão, gosto mesmo, e era isso que estava me machucando cara. Eu fiquei sentindo como se tivesse traindo os meus princípios, todo aquele meu discurso sobre o orgulho negro, toda aquela minha baboseira, aquela ladainha do tipo “me fala o nome de uma trompetista famosa?” E no fim das contas, quando você foi embora, fiquei pensando em como eu era tonto. Essa minha história de orgulho negro é racismo cara, o mesmo racismo que eu tanto digo ser contra! Como é que eu quero ser tratado como igual, independente da minha cor, se eu faço questão de me mostrar diferente exatamente pela minha cor? Pensei também que deve ser justamente por muita gente pensar como eu a respeito da mulher no jazz que nenhuma mulher conseguiu destaque em algum lugar que não fosse a voz e talvez o piano. Você abriu meus olhos meu irmão, e devo muito a você. Se a Clarisse ainda quiser tocar conosco, eu vou recebê-la muito bem.
- E você já telefonou pra ela?
- Achei que você faria isso por mim...
- Hélio... Se tem uma coisa que aprendi com você, cara, é que se alguém quer uma coisa, a única maneira de conseguir é lutando por ela, fazendo com que ela aconteça.
-Algo me diz que sou eu quem vai ter de ligar...
O Hélio ligou pedindo desculpas, não pude ouvir o que ele disse, mas funcionou, acho que a Clarisse, mesmo tendo personalidade muito forte, não é do tipo de pessoa que perde oportunidades por causa do orgulho. Depois de algumas semanas já estávamos os cinco nos apresentando novamente. Depois de um mês, as janelas já estavam novamente abertas, o Welly estava parando de fumar, e até a Elisa estava arranjando umas folgas pra poder passar umas tardes conosco e assistir há uns ensaios.
Foi nesse período que fizemos a última descoberta crucial que alterou a trajetória dos Melancólicos Azuis. Certo dia, estávamos assistindo freneticamente vídeos do Louis Armstrong, tentando emplacar mais algumas músicas em nosso repertório (que a essa altura já era composto por alguma coisa do Mingus). No fim da tarde, quando estávamos ponderando algumas músicas, escutamos uma voz maravilhosa vindo da cozinha, os cinco presentes da sala se entreolharam surpresos, ninguém jamais contava com aquilo. A Elisa havia se voluntariado para preparar o jantar enquanto discutíamos, e era ela quem cantava. Acho que após ouvir tantas vezes repetirmos a música The Blues are Brewin’ ela decorou alguns trechos, que eram reproduzidos como que por uma reencarnação da própria Billie Holiday, foi fantástico, o difícil foi convencer a Elisa de repetir o feito em nossa presença.
Em pouco tempo, conseguimos convencer a Elisa a pelo menos fazer parte dos ensaios, evitamos todas as desculpas do tipo “eu trabalho muito, não tenho tempo e tenho muitas coisas pra fazer” começando a ensaiar também aos fins de semana, antes das apresentações, quando ela realmente não tinha que trabalhar. Para que isso fosse possível, deixamos de ensaiar na terça, quando fazíamos um mutirão de limpeza na casa da Elisa, impedindo assim também que ela falasse que tinha coisas pra fazer em casa. Olhando para trás, acredito que este tenha sido o período mais divertido de minha vida.
Como conseqüência de nossa apresentação no Newport Brasil, um número muito maior de bares começou a mostrar interesse pelo nosso trabalho, às terças-feiras, por exemplo, que nunca havíamos tocado, fomos convidados a nos tornar banda residente de um café chamado Samba-Rock, que apresentava música ao vivo todos os dias, variando os estilos. Após assistir a nossa apresentação daquele evento, um dos sócios resolveu adicionar o jazz ao repertório e fomos convidados. Nossa situação emocional estava ótima, mas nossa situação financeira também nunca havia estado melhor. É lógico que de sacanagem, atribuíamos o dinheiro extra em caixa apenas ao fato do Welly ter parado definitivamente de fumar.
Quando a Elisa finalmente aceitou entrar definitivamente para a banda e fazer apresentações ao nosso lado a banda chegou a atual configuração, um sexteto de Jazz, que se não fosse pela presença da miniatura da branca de neve, pareceria saído direto dos bares americanos com quatro negrões instrumentistas e uma mulata que cantava apoiada ao piano. Mas a Clarisse estava lá, mostrando a todos que aqui, no Brasil, as coisas são assim, o espaço é dado ao talento e não ao sexo e a cor.
O sexteto fazia apresentações seis vezes por semana, sendo que já éramos residentes em três bares e itinerantes nas outras três noites. A voz de Elisa soava cada vez mais melancólica conforme ia aprimorando suas técnicas nos ensaios e apresentações. Até que veio mais uma vez, uma grande surpresa. Na apresentação de um dos bares onde tocávamos sempre, o “Felling Blues”, após a belíssima interpretação da Elisa, de “The Blues are Brewin”, fizemos um intervalo e um cara que não devia ter mais de trinta anos, cabeludo, com um visual bem pós-moderno, cheio de piercings, veio falar conosco. Ele se disse representante de uma grande gravadora, mostrou-se interessadíssimo pelo nosso trabalho e ofereceu uma quantia muito boa para que gravássemos um disco de tributo à Louis Armstrong. Hélio mostrou-se muito sério e realizou todas as negociações ali mesmo, deixando tudo certo para a elaboração de um contrato. Assim que o cara foi embora é que a fixa caiu em todos nós. Aí foi que explodimos de emoção, e foi aí que percebemos que havia uma coisa diferente no sexteto. Quando começamos a gritar e comemorar, abracei e beijei Elisa com todas as minhas forças, quando me virei para abraçar o Welly é que vi o que havia de diferente: esse momento de emoção intensa deve ter liberado alguns sentimentos que estavam reprimidos em algum lugar, pois o Hélio e a Clarisse estavam parecendo um casal de novela, em um beijo entre lágrimas, abracei Elisa e contemplamos aquela imagem. Realmente, a vida é capaz de sempre nos surpreender.
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