terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sobre música e corações - Basin Street Blues - Parte 2/6

Hoje é um dia especial, não que seja um dia especial meu, é que me sinto parte disso tudo, aliás, me sinto responsável por tudo que tem acontecido. Meu nome é Thomás e toco bateria em um pequeno grupo de Jazz. Geralmente os bateristas só tocam, é muito difícil vermos por aí um baterista querendo mandar em uma banda... Tem o Phil Collins né, mas depois que ele começou a mandar ele foi pra frente do palco... Mas enfim, eu não sou esse tipo de baterista, gosto de ficar lá no fundo mesmo, na minha, gosto de tocar e ponto. A diferença é que sei reconhecer um talento quando escuto um tocar e é aí que começou tudo... Tudo começou quando comecei uma briga com o arranjador e trompetista, Hélio, sobre alguém que tocava contra baixo...

O Hélio é assim, pra tocar Jazz tem que ser negro e homem. Se for algum tema cantado até vai lá uma mulher, negra ou branca, mas se é pra tocar, a regra é essa, negro e homem. Tem seu lado positivo, a banda adquiriu um certo renome, não é todo dia que aparecem cinco negrões em um barzinho aqui na capital e saem tocando um bop. Se acontecesse, a chance de sermos nós era cem por cento, sério mesmo. O nome ajudou bastante, Melancólicos Azuis, sugestão do sax, Welly, o nome original dado pelo Hélio era Melancholic Blues, mas aí o Welly fez uma brincadeira com o nome em português e o fato de sermos todos negrões, a brincadeira foi longe mesmo cara, e agora meio mundo de gente, mesmo que nunca tenha ouvido nosso som sabe que existe uma banda chamada Melancólicos Azuis cujos integrantes são (eram) cinco negrões. Esse “eram” em parênteses é a introdução da história que tenho pra contar.

Os Melancólicos eram cinco, como eu já disse: o Hélio, arranjador e trompetista; o Welly no sax; o Marcus no contra-baixo; o Wilsão no piano; e eu, Thomás, na bateria. Conheço todo mundo há muito tempo, desde a adolescência, quando resolvemos que iríamos fazer diferente, enquanto a galera se divertia cantando um rap, nós queríamos tocar Jazz, pro Welly e pro Wilsão até que foi fácil, a igreja deles, Congregação, deu maior apoio e eles receberam apoio dos irmãos e da família, já pra mim, pro Hélio e o pro Marcus foi bem mais difícil, ralamos mesmo. Ergui umas quatro casas pra bancar o instrumento e as aulas e quando começamos a tocar pra valer, o Hélio teve que se demitir, era entregador de pizza no mesmo horário em que deveríamos tocar. 

Já estávamos vivendo das apresentações há alguns anos, havíamos alugado uma casa e podíamos fazer o quiséssemos lá, convidávamos amigos e fazíamos uns sons meio doidos, Jazz e Hip Hop, Jazz e Rock, Jazz e MPB, enfim, a casa era nossa e todo mundo era bem vindo, quando anoitecia fazíamos o que sabíamos de melhor. Até que um dia o Marcus vacilou, essa vida boemia tem seus pontos negativos, o Marcus bebia bastante e brigávamos muito por isso, ele chegava ao ponto de perder o ritmo em algumas apresentações. Após uma dessas brigas ele pegou a moto e saiu à milhão, no dia seguinte todo mundo achou que ele tinha desencanado da banda, sua mãe o achou no IML. Foi barra. Não gosto muito de falar sobre isso.

Continuamos nos apresentando como quatro negrões, bem mais melancólicos que antes e sem um contra-baixo. E agora você deve estar pensando “caramba, eu achei que essa era pra ser uma história feliz!” e eu digo “calma, calma, quem nunca conheceu o fundo do poço não sabe como é bom estar por cima”. Nossa cidade é cheia de eventos culturais, sabe, e isso é muito bom, as pessoas deviam aproveitar mais, tem muito evento gratuito e eles nunca estão cheios. Eu gosto muito de assistir a alguns concertos, gosto de escutar música erudita também, é bom não ficarmos bitolados em um único tipo de som.

Certa tarde eu fiquei sabendo que haveria uma apresentação de jazz com membros de uma das orquestras locais, fiquei muito interessado, tocariam temas do Louis Armstrong, para quem não conhece Armstrong, ele está para o jazz como o John Lennon está para o rock. A orquestra estava composta por cinco pessoas, um trompete, um trombone, um clarinete, um piano, e um contra-baixo, eles não tinham um baterista, e como eu havia chego com antecedência fui conversar para ver se eu poderia compor com eles. Não tiveram uma boa impressão de mim, veja você, cinco pessoas da orquestra querendo fazer uma apresentação, chega um cara de dois metros de altura, cabelo black power, jeitão de jogador de basquete e diz que pode tocar bateria, qualquer um ficaria desconfiado. Expliquei que eu tocava em um conjunto de jazz, os Melancólicos Azuis, e aí a contra-baixista disse que já havia nos visto algumas vezes e convenceu os demais, o pessoal do teatro tinha sua própria bateria a qual me emprestaram. A música que eles tocariam primeiro era a Basin Street Blues e tive três boas surpresas nela, a primeira foi ver da boca do trompetista, um cara magrelo, loiro, cheio de espinhas, sair uma voz que, apesar de não chegar a ser a do Louis Armstrong, ficava bem próxima da do Sebastian (lembra? Aquele que fazia as propagandas da C&A? hahaha). A segunda foi todo mundo ter acenado com a cabeça e parado para que eu solasse, lógico que aproveitei a oportunidade pra me mostrar um pouco, e a terceira e mais surpreendente de todas foi ver a contra-baixista, uma mulher que lembrava uma miniatura da branca de neve da Disney, menor que o contra-baixo, avançar três passos com aquele instrumento enorme e solar como eu nunca tinha visto. O resto da apresentação seguiu este patamar. Não gosto de me gabar, no entanto, fomos muito bons mesmo.

Após a apresentação fomos os seis tomar umas cervejas e jogar conversa fora, falei que já havia assistido algumas apresentações da orquestra e que nunca havia imaginado que eles pudessem tocar da maneira como havíamos tocado hoje, não que um seja mais difícil de tocar que o outro, jamais duvidaria das capacidades técnicas de membros de uma orquestra, mas o jazz não é apenas ter técnica e seguir uma partitura, o jazz envolve saber transgredir aquela partitura e por vezes abandonar a técnica. Eles me explicaram que possuem este projeto paralelo à orquestra já há muito tempo, mas que só neste dia sentiram-se preparados para tocar. Trocamos telefones, passei meu endereço e cada um seguiu seu caminho.

Depois desse dia é que eu fiquei com a idéia fixa de que a Clarisse, a miniatura da branca de neve, deveria tocar conosco. Sente o drama? Fiquei uns dias com a idéia na cabeça sem nem ter coragem de tocar no assunto com os outros caras, tudo por medo da reação do Hélio. Depois da morte do Marcus o Hélio andava mais estourado do que o normal, tinha parado de beber também, o negócio todo mexeu muito com ele. Nos primeiros dias ele até voltou pra casa da mãe dele, o cara ficou abalado mesmo. É nessas horas que eu fico com uma ponta de inveja do Welly e do Wilsão, acreditar em um Deus, em um paraíso e em todas essas coisas faz muito bem pra eles, conseguiram superar a perda do Marcus bem mais rápido que nós, é claro que isso não significa que não sintam saudades, teve um dia que eu cheguei em casa e o Wilsão tava parado na porta do quarto do Marcus olhando lá pra dentro, a cena foi bem triste, não é todo dia que a gente vê um negrão de um metro e noventa, com uns cento e trinta quilos, barbudo, chorando como uma criança. Enfim... A questão é que ainda estávamos muito abalados e eu não tive coragem de falar com o Hélio, mas não tinha uma noite que antes de dormir eu deixava de lembrar a execução de Basin Street Blues.

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