quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sobre música e corações - So What - Parte 3/6

O Hélio sempre teve uma vida difícil, mas nunca foi pobre, isso devido ao fato de sua família ser muito dedicada. Desde os quatorze anos ele ajuda o pai, que trabalha como pedreiro (eu também comecei como servente de pedreiro do seu João, pai do Hélio, mas só aos dezessete), aos dezoito ele cansou, comprou uma moto e arranjou emprego como entregador. A família dele nunca acreditou que ele conseguiria ir tão longe com a música, tampouco acreditavam que ele iria longe com os estudos, isso foi bom, o Hélio é orgulhoso pra caramba, e só porque ninguém punha fé nele, mandava muito bem tanto nos estudos quanto na música, sempre me espelhei muito nele, ao ponto de muita gente achar que somos irmãos. Apesar de ser bem mais baixo que eu ele parece comigo, tem um metro e oitenta, faz alguns anos que anda sempre com o mesmo cavanhaque, pontudo no queixo, costuma estar sempre de óculos escuros, tem uma puta pinta de artista, sério mesmo. Foi ele quem idealizou a banda e se esforçou para convencer cada um de nós, muito orgulhoso e teimoso, geralmente as coisas acontecem como ele quer que aconteçam, mas isso não é regra. Outra característica que não pode passar em branco é essa fissura que ele tem por seu, ou nosso, africanismo, se ofende sempre, achando que estão sendo preconceituosos pelo fato de ser negro (não gosto muito disso, mas depois de quinze anos de convivência acabo abstraindo). Enfim, era desse cara que eu estava com medo.

Depois de alguns dias eu tive a oportunidade perfeita pra começar a amaciar o Hélio. Recebemos uma proposta para tocar em um bar chamado Newport Brasil, bem reconhecido aqui na região, acontece que a ocasião era o aniversário de 50 anos de um álbum chamado A Kind of Blue do Miles Davis. Não que fosse impossível para nós, o grande problema é que este álbum é inexeqüível sem um contra-baixo. Nunca tocamos uma música como se fossemos playbacks vivos, sempre deixamos nossa alma fruir, mas nesse álbum o contra-baixo é quem faz toda a harmonia, liberando os demais para solar à vontade. Esperei ele começar a se descabelar e a alisar freneticamente o cavanhaque pontudo, foi aí que comecei a falar sobre o dia em que toquei com a orquestra no teatro. Silêncio. Foi tudo que ouvi depois que parei de falar. Depois de um minuto com a duração de uma hora o Wilsão foi quem arriscou falar alguma coisa. O cara é muito gente fina. Se não fosse ele ter quebrado o gelo talvez tudo fosse muito diferente, antes que o Hélio negasse, e me falasse todas aquelas coisas de que para o jazz ser verdadeiro ele deveria ser executado por homens negros, o Wilsão propôs que procurássemos em todos os lugares, na cidade e na região, que colássemos lambe-lambe nos postes e publicássemos anúncios na internet e nos jornais, se até uma semana antes da apresentação não aparecesse ninguém que tocasse satisfatoriamente, não teríamos outra escolha. O Hélio olhou pra cada um de nós como se o estivéssemos apunhalando antes de fazer um aceno seco com a cabeça, inclina levemente para baixo, volta para lugar.

Eu sei que isso é muito clichê, mas eu tenho de dizer que os dias se passaram muito lentamente, porque foi exatamente isso que aconteceu. Apesar de toda a correria, dos dias inteiros procurando formas de anunciar que precisávamos de um contra-baixista e das noites inteiras tocando em diversos bares pela cidade, o tempo pingava lentamente. Eram três semanas para encontrar um novo integrante ou quatro semanas para a apresentação. Eu achei que o Wilsão tinha sido muito justo e não tentei sabotar a divulgação, se achássemos um contra-baixo esta tudo resolvido de qualquer forma, apesar de ser um grande desperdício não chamarmos logo a Clarisse.

É incontável o número de pessoas que tocavam baixo elétrico que nos procurava, e quando dizíamos que precisávamos de alguém que tocasse um acústico, um ou outro dizia que apesar de não possuir o instrumento talvez pudesse tocar, quando trazíamos do quarto o contra-baixo do Marcus, víamos o cara embasbacado, sem saber nem como segurar o trambolhão. Não posso negar que era até engraçado, muito marmanjo que chegava com a maior pinta de bonzão não conseguia nem tirar som do contra-baixo. 

Em todas as nossas apresentações anunciávamos estar em busca de um quinto integrante, e certo dia a Clarisse estava presente no bar. Na hora em que o Hélio fez o anuncio eu senti os olhos dela me fulminando, eu não soube o que fazer, mas senti que precisava mesmo que algo fosse feito aquela noite. Juro, alguma coisa em mim me mandava tomar alguma atitude, e pra quase tudo na vida eu não sou assim, as vezes sou até meio pau mandado, mas é porque um sem número de coisas que as pessoas consideram importantes e ficam se estapeando pra decidir, realmente não me fazem a menor diferença, agora, quando o negócio tem a ver com a minha arte acontece isso, me dá uma sensação de que alguma coisa tem que ser feita, e rápido. Aproveitei o primeiro break, enquanto todo mundo ia ao banheiro ou tomava uma água, fui até a mesa da Clarisse, não falei nem boa noite e já lancei direto:

- Qual a probabilidade de você ter trazido seu contra-baixo?

Ela riu e respondeu:

- Só alguém muito estranho fica transportando um treco daquele tamanho de um lado para o outro da cidade - E antes que eu conseguisse exprimir meu desapontamento, ela deu mais uma risada e continuou falando - Sabe que eu realmente sou uma pessoa muito estranha e estou com meu contra-baixo no carro? Depois do ensaio da orquestra eu fui pra casa tomar um banho e vim direto pra cá, acabei o deixando no banco de trás, se você me der uma mão, trago pra cá em um instante.

Quando eu entrei no bar segurando um contra-baixo toda a banda sorriu, quando atrás de mim entrou uma miniatura da branca de neve um dos rostos ficou sério. Sabia que isso aconteceria, mas eu já havia começado e iria terminar. Apresentei a Clarisse para os três e apresentei os três para Clarisse, preparei os instrumentos, virei pro Hélio e falei:

- Vamos tocar Armstrong?
- Agora? Não.
- Vamos tocar o que?

Achei que o Hélio ia aprontar alguma, mas ele me surpreendeu, realmente, tomou uma decisão muito mais sensata do que a que eu havia tomado quando propus que tocássemos Armstrong:

- Miles, não é pra tocar Miles que precisamos de um contra-baixo?

Perguntei pra Clarisse o que ela achava disso, ela até se ofendeu, na euforia, eu fiz a pergunta de uma forma que ficou parecendo que eu menosprezava o conhecimento teórico dela, nos preparamos, demos um tempo para que ela aquecesse os dedos, então Hélio foi ao microfone e anunciou:

- So What.

Escutei dedos estralando a minha direita, era o Wilsão se preparando. A versão de estúdio dessa música possui uns dez minutos, mas na versão de estúdio são dois saxofonistas, um alto e um tenor, o Welly é tenor, mesmo ele prolongando bastante seus solos e fazendo algumas linhas de ambos a música fica mais curta, isso não faz, pelo menos pra mim, com que ela fique pior. Quando o Wilsão finalmente martelou as primeiras teclas do piano fiquei bem tenso enquanto esperava sua deixa, onde eu iniciaria o acompanhamento e o baixo faria sua apresentação, ela realmente conhecia a música e teve vigor para tocá-la inteirinha sem sair do compasso. O Welly mandou muito bem, o público ficou muito satisfeito. 

Terminamos a apresentação daquela noite novamente como um quinteto. A sensação era muito boa. A Clarisse não era o Marcus, não tocava como ele, mas no jazz isso não significa necessariamente tocar melhor ou pior, o som que tiramos de nossos instrumentos tem muito de nossa alma, não se pode imitar um outro instrumentista, nunca fica igual. A Clarisse era diferente e isso me agradou, não queríamos ninguém imitando o Marcus em nossa banda, ele havia sido único e permaneceria em seu lugar. 

Nunca costumávamos sair logo que o bar fechava, sempre ficávamos mais um pouco enquanto o pessoal limpava tudo, nesse tempo comentávamos nosso som, repetíamos algumas passagens, tocávamos outras de maneira diferente, já pensando em uma próxima apresentação. Nesse dia, aproveitamos a presença da Clarisse para tentar definir qual era seu domínio do instrumento, sua influência erudita era bem marcante e a tornava singular.

Quando chegamos em casa, eu realmente estava satisfeito, achei que, mesmo que só até a apresentação do A Kind of Blues, eu havia garantido a presença da Clarisse na banda e daí pra frente seria só fazer a cabeça do Hélio para que ela fosse efetivada. Doce ilusão, eu ainda não conhecia direito a personalidade da Clarisse, mas logo descobriríamos que por trás daquela aparência frágil, havia um gênio tão forte quanto o de Hélio. E isso não seria nada bom para o resto da banda.

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