domingo, 30 de janeiro de 2011

Sobre música e corações - Open Letter to Duke - Parte 4/6

Nos primeiros ensaios a presença da Clarisse em nossa casa foi uma dádiva. Todos sentimos isso, ela chegava e abria as janelas, dizia que se o Welly não parasse de fumar todos nós morreríamos de câncer no esôfago. O Welly levava numa boa, dava umas risadas e acendia outro cigarro, só de sacanagem. Ele é o cara mais sacana da banda, não um cara sacana que faz maldades, mas é sacana por estar sempre tentando irritar alguém. Se você diz que aquele pedaço de melão na geladeira é seu, mesmo que ele não goste de melão ele espera um tempo, vai lá e come, mas isso não é o pior, o pior é que quando você perguntar quem comeu seu melão ele vai responder “ah, era seu? Foi mal”. Pra todo mundo que não for o dono do melão, a cena sempre é muito engraçada, ele faz essas coisas porque sabe disso. Bom, voltando ao assunto, a Clarisse mudou algumas coisas em casa e gostamos disso, acho que no fim das contas sangue novo sempre é bom pra dar uma reanimada no ambiente.

A Clarisse começou a ensaiar conosco na mesma época em que comecei a sair com a Elisa, uma mulher que freqüentava os mesmos eventos que eu, ou seja, já saiamos juntos muito antes de nos conhecermos, engraçado pensar assim, a primeira mudança em nossas vidas, foi que, começamos a chegar no mesmo horário e sentar um ao lado do outro. Foi só quando comecei a sair sério com a Elisa que alguém voltou a utilizar o quarto do Marcus, como a casa tinha quatro quartos, eu costumava dividir com o Hélio, mas agora eu queria ter um pouco mais de privacidade. As duas, a Clarisse e a Elisa, se deram muito bem, o mais importante pra saúde da casa sempre foi isso, todos que moram nela e a freqüentam assiduamente amam a música em muitas de suas formas.

Até a apresentação no Newport Brasil, a casa estava uma maravilha, todo mundo descontraído. O clima tinha voltado a ser o mesmo de antes do Marcus se tornar um alcoólatra, entre nós, pairava sempre um clima de brincadeira e até um descaso com o futuro. A apresentação no Newport foi bem diferente do que eu imaginava, eu nunca havia visto, e ainda não vi de novo, uma casa, onde fosse tocar jazz, tão cheia. Muitos rostos diferentes do que aqueles que estávamos acostumados, ficamos sabendo que a divulgação do evento, feita pela casa, havia sido pesada e que um apresentador de programa de uma emissora de televisão, fanático por jazz, havia vindo nos assistir. A presença anunciada dele é que havia feito a casa encher. Por um lado isso é bom, faz muito bem pro ego tocar em uma casa cheia, por outro lado, tocar para um monte de gente que não está nem aí para o jazz faz você se sentir um pouco como um bobo da corte.

Quando terminamos de preparar nosso equipamento, antes de começar a tocar, olhamos uns para os outros, e foi como se tivéssemos realizado um pacto ou estipulado um objetivo: não seriamos os bobos da corte, fazendo música de fundo enquanto todos paparicavam um apresentador de televisão. Fizemos disso nosso objetivo e posso dizer com toda certeza que o cumprimos, nunca havíamos tocado de forma tão complexa, nem nos ensaios mais ousados, aquele álbum. Não que a harmonia me permitisse fazer grandes coisas, queria ter me exibido bem mais, mas na medida do possível eu fiz minha parte. Quanto a Clarisse, foi a que menos pode aproveitar, seu grande mérito foi ter mostrado uma incrível resistência sem sair do tempo nenhuma vez. Já o Welly, eu juro que em alguns momentos eu achei que ele iria explodir, nunca tinha visto o cara tocar com tanto vigor, tocamos o primeiro tema em quase quinze minutos. O Hélio e o Wilsão também foram impecáveis e isso nos abriu algumas portas, hoje posso dizer isso com toda certeza.

O sucesso na apresentação do Newport fez com que criássemos, o Hélio querendo ou não, um vínculo com a Clarisse, que, mesmo sem a certeza de continuar fazendo parte da banda, continuou comparecendo freqüentemente em nossa casa. Já não podíamos mais excluí-la, e todos sabiam disso, inclusive ela. Foi nesse ponto que a casa mais parecia nitroglicerina, explodia ao maior descuido. Ninguém jamais podia tratar a banda como “quinteto” perto do Hélio, tampouco como “quarteto” perto da Clarisse, o primeiro explodia com a menor alusão à garota como integrante da banda, enquanto a garota esbravejava se qualquer um desse a entender que ela ainda não fazia parte da banda, foram tempos difíceis. A Elisa, que estava de fora, achava tudo muito engraçado, coisa que me deixava chateado.

Certo dia estávamos os cinco na sala pensando em possibilidades para um novo repertório, quando a Clarisse fez sua primeira sugestão, não tenho como me esquecer desse dia, muita coisa mudou depois dele:

- E se tocássemos Mingus?

Pra quem não entende, Charles Mingus foi um renomado jazzista, o seu diferencial em relação aos outros é que geralmente o líder da banda é o trompetista, e Mingus era líder e tocava contra-baixo, para mim, não há problema nenhum nisso, acontece que não podemos esquecer que para o Hélio, quem toca jazz é homem e negro, e nesse momento havia uma mulher e branca ameaçando tomar a liderança da banda que ele havia formado.

- E quem você acha que é para sugerir que toquemos alguma música? Não me lembro de você fazer parte dessa banda, não é só porque você quebra um galho pra gente que já pode se achar no direito de decidir qualquer coisa aqui.

Achei que a Clarisse fosse discutir, ela sempre discutia conosco, mas dessa vez não, ela apenas se levantou, pegou suas coisas e saiu. Ficamos todos pasmos, Wilsão foi o primeiro que saiu da sala, foi para seu quarto, sem dizer nada e não saiu mais de lá, o Welly apenas abaixou a cabeça e pousou as mãos entrelaçadas na nuca, ele sempre fazia isso quando não sabia o que fazer. E pela segunda vez, nessa história, eu senti que precisava fazer alguma coisa, foi então que antes de sair de casa eu disse:

- Sinceramente, meu amigo, esperava mais de você...

Fui pra casa da Elisa que morava em um apartamento não muito longe de casa, fiquei uns dias por lá, não queria ver a cara do Hélio. Não foram muitos dias, foram quatro para ser mais preciso, eu queria ficar mais tempo fora mas não agüentei. Ficar fora de casa, para mim, não é simplesmente ficar longe do Hélio, ou do Wilsão, ou do Welly, ficar fora de casa é ao mesmo tempo ficar longe da família e longe do emprego. Tudo o que eu faço da vida está ali, as pessoas com quem me relaciono, meus companheiros de trabalho e minha bateria. Ficar longe de casa é ficar sozinho. Durante a noite foi muito bom estar sempre por perto da Elisa, ela é uma excelente mulher, gosta de conversar sobre qualquer coisa, sempre tem bons conselhos e é uma namorada muito carinhosa. Agora, durante o dia, enquanto ela estava trabalhando, era o inferno, não nasci para apreciar a televisão ou essas artes visuais, meu negócio é tocar, e quando não estou tocando, tenho que estar conversando com alguém, ficar sozinho e sem minha bateria é a mesma coisa que estar em outra galáxia, fico totalmente perdido.

E foi por esse motivo que depois de infinitos quatro dias eu resolvi voltar para o quartel general dos Melancólicos Azuis.

Um comentário:

  1. http://www.backin77.com/

    Um site legal que encontrei enquanto procurava um CD do Hank Williams...

    Abraços.
    Leo

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